Há quem ache que aquelas equipas que estão sempre lá em baixo da tabela classificativa se encontram lá porque são mal dirigidas. Algumas são. Outras nem por isso. Estar lá em baixo é, muitas vezes, um efeito estrutural. Como num campeonato só pode haver um vencedor, sempre haverá alguém lá em baixo.
E como ganhar significa captar a atenção de talentos, patrocinadores, assim como o direito de competir com equipas mais fortes noutros tipos de competição, quem ganha tem grandes probabilidades de continuar a ganhar. A mesma coisa acontece com países e sua relação com o desenvolvimento.
Se o mundo fosse justo, não haveria nenhuma razão para não nos desenvolvermos. Trabalhamos duro como todos os outros, mas, lá está, fazemos isso dentro dum contexto estrutural viciado. Deixem-me contar uma história que me ocorreu a propósito das “dívidas ocultas”.
A história aconteceu no tempo da escravatura, que ainda não passou. Foi numa plantação de sonhos de progresso que usava mão-de-obra cativa. Trabalhava-se duro nessa plantação.
Todos os dias, os escravos acordavam cedo para aprenderem a organizar melhor a sua vida e deixarem de ser escravos. Quem os ensinava eram capatazes que não aprenderam isso em lado nenhum.
Sabiam como se organiza a vida porque trabalhavam para o senhor, que por ser senhor devia saber.
Os capatazes não davam muito espaço de manobra aos escravos. Aprender a organizar a vida significava fazer só aquilo que os capatazes consideravam correcto, mesmo quando os mais espertos, entre os escravos, sabiam que as coisas podiam ser diferentes. Mas a escravatura era isso mesmo. Se você é escravo, você não sabe nada. Aliás, você não pode saber nada. Na verdade, o que sustentava esta cultura de ignorância era todo um sistema normativo que fazia do comportamento normal duma pessoa em situação de escravatura a principal causa da sua condição.
Assim, dizia-se que faltava espírito empreendedor ao escravo porque trabalhava mais horas para o senhor do que para si; dizia-se que era preguiçoso porque o intenso esforço físico não o deixava com energia para fazer outras coisas com o mesmo zelo; dizia-se que era inculto porque depois de tanto trabalho não lhe restava entusiasmo para a leitura; dizia-se que era ladrão porque de vez em quando comia mais do que devia porque o senhor lhe dava muito pouco. Até havia associações clandestinas de escravos para lutar contra o roubo, pois muitos deles acreditavam que eram escravos por causa desse espírito de roubar.
Os escravos com melhor situação eram os que trabalhavam na cozinha. Um deles chamava-se Thlanyala, muito esperto e resoluto. Tinha esquemas para subtrair alimentos que distribuía aos outros. É claro que muitos deles achavam que ele ficava com a parte de leão, mas não diziam nada para não comprometer a pequena parte que recebiam. Thlanyala achava que a melhor maneira de saírem daquela condição não era só participar nos cursos ministrados pelos capatazes. Ele achava que deviam reter uma parte do que produziam para o senhor para posterior revenda. Sabia, contudo, que se dissesse isso aos capatazes estes imediatamente diriam não, pois sabem o que é melhor para os escravos.
Foi assim que ele aproveitou uma das suas idas à vila para fazer compras para discutir com agiotas esquemas para contornar o sistema dos capatazes. Não havia como discutir isso com os capatazes sabichões, mas também é difícil de imaginar que eles ficassem na completa ignorância dada a estrutura financeira da economia esclavagista global. Para conseguir o apoio dos agiotas, ele penhorou a produção dos outros escravos sem os consultar, mas na esperança de que o negócio desse certo e eles se libertassem do abraço sufocante dos capatazes. É difícil saber hoje se o negócio era bom ou não. A gente só pode especular que fosse, sobretudo tendo em conta que parte daqueles que iam disponibilizar alguns dos insumos eram senhores de outras plantações com ligações de nacionalidade com a patroa-geral dos capatazes.
A verdade é que não resultou e a coisa chegou aos ouvidos do senhor. Este ficou furioso depois de tudo o que ele fazia pelos escravos. Assim, decidiu parar com os cursos de como organizar a vida dos escravos, cursos esses que em 30 anos só tinham surtido como efeito a necessidade de mais cursos.
Como a maior paixão dum escravo é o medo de um dia ficar sem o amparo do senhor, os escravos indignaram-se com o comportamento de Thlanyala, distanciaram-se dele e aplaudiram o senhor, ruidosamente, quando ele disse que só retomava os seus cursos inúteis se os outros escravos lá na cozinha entregassem o pescoço de Thlanyala e de todos aqueles com quem ele comeu. Mais vale ser escravo gordo do que ser livre, mas com fome. A ideia de que a sua condição de escravos sob a tutela de capatazes tão perplexos quanto eles pudesse ser parte do problema não lhes passava pela cabeça. Na verdade, tal como alguém muito perspicaz que salvou muitos escravos uma vez disse: “se muitos soubessem que eram escravos teria salvo muito mais gente”.
Hoje, todos os problemas lá na plantação devem-se a Thlanyala. O medo de ser livre clama por um bode expiatório. E ai do sucessor de Thlanyala que ousar chamar atenção para todo o sistema! Todo o sistema de escravatura perpetua-se na forma como faz dos escravos inimigos entre si. Dessa maneira, eles não são capazes de verem o que têm em comum. A coisa piora quando o escravo rebelde transforma-se em inimigo dos outros escravos por desobediência ao senhor.