Há falsos guias para o desenvolvimento

Tal como no quotidiano, há falsos cicerones. Tendo que ir à casa de uma minha tia, prima do meu pai, na minha pré-adolescência, precisei de um guia.

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A casa da minha tia localizava- se a uma distância considerável do local onde eu morava, em Madzukane. Conhecendo mal os sendeiros da terra, por passar mais tempo em Xai- -Xai, onde fiz todo o ensino primário, o meu pai aconselhou-me que passasse pela casa de um seu sobrinho, seu xará, um rapagão que acabava de regressar da sua primeira viagem às minas da África do Sul.

Ao longo do caminho, o meu primo comunicou-me que, porque ainda cedo, poderíamos passar pela casa de uns amigos seus. Lá nos desviamos e entrámos numa casa onde jovens da sua idade se deliciavam sorvendo uma aguardente caseira, feita de “massala”, de que todos eles eram notórios apreciadores. O meu primo foi convidado a integrar a roda na qual circulava um grande copo, repleto do inebriante “sope”, nome por que é conhecida naqueles locais a apreciada aguardente.

Eu, entretanto, entretive-me a apreciar como Amerikwane, o indivíduo encarregue de encher o copo, servia aos outros, de maneira transparente, mostrando a todos até que medida igualitária havia servido a bebida. Notei ainda que a regra da transparência era esquecida quando chegava a vez de Amerikwane se servir. Neste último caso, ele rodeava o imenso copo de quatro dos dedos da mão esquerda, para que os outros convivas não notassem que o havia enchido até ao limite.

Não sei por que artes de magia, naquela zona de Madzukane o Amerikwane calhava sempre com aquelas privilegiadas funções. Não há que dizer que foi à força de habilidades e de sorte que logrei que eu e o meu primo chegássemos à casa da minha tia, esquivando milagrosamente do caminho das nossas bicicletas os numerosos cactos espinhosos e as micaias que bordejavam o estreito caminho.

O guia emborrachara- se miseravelmente e revelava-se inapto para indicar qualquer caminho. Aqueles factos da minha meninice vêm-me à memória quando escuto conselhos dos nossos “parceiros” sobre como poderíamos alcançar o progresso dos nossos países.

Sobretudo quando esses “conselhos” se tornam repetitivos em torno de palavras ocas como “boa governação”, “corrupção”, “transparência” e outras tais, esquecendo convenientemente uma questão de peso, nomeadamente os fluxos ilícitos de capitais. Quando esses “parceiros” falam de “transparência”, lembram- -me, estranhamente, o Amerikwane servindo o “sope” com grande transparência, excepto quando chegava a vez de ele próprio se servir…

Os fluxos ilícitos de capitais na África Subsaariana foram estimados, em 2013, como estando próximos dos USD 70 biliões, representando 6,1 por cento do seu PIB. No mesmo período, o subcontinente recebeu perto de USD 56 biliões de contribuições de países e organizações multilaterais, na forma de ajudas ao desenvolvimento.

Constata- se claramente que, a haver-se abordado com o sucesso o desafio dos fluxos ilícitos de capitais, a África Subsaariana não precisaria de qualquer forma de ajuda dos países desenvolvidos. Na verdade, não existe corrupção mais prejudicial ao nosso desenvolvimento que os fluxos ilícitos de capitais, propiciados maioritariamente por companhias multinacionais.

A facturação fraudulenta, quer na forma de subfacturação quer na forma de sobrefacturação, foi tida como a componente mais expressiva dos fluxos financeiros ilícitos com origem nos países em desenvolvimento, representando 83.4 por cento de todos os fluxos. Isto significa que qualquer esforço de lidar com o empobrecimento de países como o nosso deve ter em conta este aspecto.

Para o caso de Moçambique, estudos revelam que os fluxos ilícitos brutos acumulados, provenientes da adulteração de facturas comerciais, totalizaram USD 5,27 mil milhões entre 2002-2010. Os fluxos ilícitos anuais médios foram de USD 585 milhões, representando a enorme proporção de 8,9 por cento do PIB anual médio ao longo do mesmo período.

Uma parte substancial destes fluxos ilícitos toma forma na sobrefacturação de bens e serviços importados, como sejam: Assistência técnica – neste item, o país tem estado a pagar preços empolados em fornecimentos como pessoal expatriado em serviço nas empresas, hardware e software informático e outros serviços.

O facto de a assistência técnica estar, muitas vezes, a ser fornecida pelas empresas matrizes estrangeiras facilita sobremaneira estas ilicitudes; Matérias-primas e equipamentos – de novo, o facto de estes bens estarem, em muitos casos, a ser fornecidos pelas empresas matrizes facilita, em grande medida, o facto de o país estar a pagar duas ou três vezes mais o preço de um determinado bem.

Já subfacturação toma forma na subdeclaração das quantidades exportadas, subclassificação dos bens exportados e indicação de um preço inferior ao do mercado. Se considerarmos que o país, depois de 2010, incrementou as suas exportações de carvão e gás e que a importação de bens e serviços para servir essas indústrias tem estado também a crescer, fica clara a necessidade de garantir que os sistemas de controlo existentes sejam suficientes para gerir este crescimento e para responder ao desafio de reduzir a adulteração de facturas.

Caso contrário, o volume dos fluxos ilícitos brutos será incontrolavelmente alto, o que perpetuará o nosso atraso económico relativo. Abordar a questão dos fluxos ilícitos de capitais, talvez a maior causa do subdesenvolvimento de países como o nosso, é, inquestionavelmente, uma tarefa complexa.

O foco deverá, contudo, ser o de garantir que bens importados ou exportados sejam registados com um valor baseado no seu preço de mercado efectivo.

E, também, garantir que não haja subdeclaração e subclassificação das exportações e não haja sobre declaração e sobre classificação das importações. Haverá, em primeiro lugar, que avaliar a legislação que regula o comércio exterior, incluindo o das commodities como carvão, gás e petróleo, para determinar se não seria necessário criar e/ou agravar as leis que criminalizam especificamente a sobre ou sub facturação comercial com o fim de sonegar receitas em divisas, sonegar impostos ou evitar o pagamento de tarifas ou para contornar controlos de lavagem de dinheiro.

Talvez haja que instituir que os importadores e exportadores (ou despachantes aduaneiros) assinem declarações indicando que as quantidades, qualidade e preços indicados nas declarações de importação/exportação são precisos e honestos. A possibilidade de cassação da licença do despachante aduaneiro, por exemplo, em caso de fraude provada, pode ter um efeito dissuasivo poderoso.

Em segundo lugar, as declarações de importação/ exportação devem ser equiparadas às normas a que estão sujeitos os contabilistas. A detecção e identificação da sobre faturação e/ou subfacturação comercial devem ser incorporadas às práticas contabilísticas e de auditoria de aceitação geral usadas em Moçambique. Auditores de empresas de importação ou exportação devem ser capacitados para identificar transacções suspeitas e verificar se foram adequadamente facturadas.

Tanto gestores como auditores de empresas moçambicanas envolvidos no comércio internacional devem ser obrigados a assinar declarações nas contas anuais dessas empresas, certificando que todas as transacções foram facturadas de acordo com a legislação. Como acontece com as declarações de importação/exportação, essas declarações simples aumentariam a responsabilidade pessoal e a responsabilização pelas decisões de preços dessas empresas, dissuadindo condutas intencionalmente fraudulentas.

Em terceiro lugar, o país deve, muito rapidamente, constituir uma base de dados alargada sobre preços do mercado mundial, pelo menos dos bens e serviços mais importantes no seu comércio internacional. Essa base de dados deve ser acessível aos ofi ciais da Autoridade Tributária que lidam com matérias de importação/exportação, dando-lhes a possibilidade de que possam facilmente comparar os valores declarados de importações/exportações.

Deverão, adicionalmente, poder solicitar documentação adicional sempre que seja necessário. Por último, nas negociações multilaterais (com pressão conjunta dos países subdesenvolvidos vítimas dos fluxos ilícitos de capitais), dever-se-ia avançar para forçar as companhias multinacionais a publicar as suas receitas, lucros, perdas, vendas, impostos pagos, empresas subsidiárias, emprego e salários, país por país.

Esta provisão permitiria testar o nível de transparência das suas operações. E todos os países deveriam participar num amplo movimento orientado para a partilha automática de informação fiscal. Entidades que recusassem estas práticas deveriam ser consideradas não credíveis para pronunciar palavras ocas como “corrupção”, “boa governação’ ou “transparência”.

Caso não se transponham os cactos e micaías que tolhem o nosso desenvolvimento e, sobretudo, caso se continue a ignorar as questões de subfacturação/sobrefacturação, que verdadeiramente condicionam o nosso desenvolvimento, estaremos a seguir falsos guias, que inventaram palavreado sonoro e apelativo para nos distrair.

São como guias falsos que não nos conduzem a sítio nenhum.