FMI sofre de “madoença”

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No desporto, não há pior coisa que não estar a jogar. Cria aquilo que em Xai-Xai chamamos de “madoença”. Você fica sentado na bancada de espectador ou no banco do treinador e vai involuntariamente chutando bolas fictícias, com o risco de chutar alguém sentado à frente.

“Madoença” é a doença de quem gostaria de fazer, mas não pode. Entretanto, na sua impotência, pensa que sabe mais, pode fazer muito melhor e, por isso, tem a obrigação de se envolver. Há uma instituição no nosso seio, o Fundo Monetário Internacional, que sofre de “madoença”. Acha que pode fazer muito melhor, mas na verdade esse achismo se funda apenas no facto de dispor de e poder distribuir dinheiro que outras pessoas mais capazes fi zeram. A apetência para a arrogância nestas circunstâncias é enorme. É como alguns galos que acreditam que o sol se levanta por sua causa.

Esta citação de Theodor Fontane, um grande escritor alemão, veio-me à cabeça depois de ler um curto, seco e soberbo comunicado emitido pelo representante do FMI em Moçambique em reacção a um comunicado da Procuradoria-Geral da República, apelando para a responsabilização das pessoas envolvidas nas “dívidas ocultas” e informando sobre o encaminhamento do caso ao Tribunal Administrativo. A futilidade do comunicado tornou-se logo clara com a reacção ingrata do FMI. Ele saúda o passo, mas adverte que só ficará completamente satisfeito quando as empresas em questão tiverem facultado todas as informações que a Kroll não foi capaz de juntar.

Há aqui uma perversão do sentido de justiça que eu não entendo. Há moçambicanos que a entendem, sobretudo aqueles que, por razões apenas por eles conhecidas, se juntam ao “show” de falsa indignação dos doadores. O tipo de “justiça” que o FMI exige é, na verdade, uma espécie de ajuste de contas entre os moçambicanos, pelo simples prazer de demonstrar força e poder. Esta encenação de indignação que se arrasta já por muito tempo é muito curiosa. Como uma vez me confidenciou um ofi cial dos serviços alemães de inteligência, segredo é o que os serviços de inteligência escondem ao público, pois entre eles sabem de tudo e passam as informações para os seus governos.

O FMI, com a sua directora-geral francesa, Christine Lagarde, é a última instituição no mundo que pode falar indignada de “dívidas ocultas”. O acto de lançamento das obras para as 30 embarcações em Cherbough, na França, em 2013, contou com a presença do Presidente francês, François Hollande, e do fi lho cada vez menos querido da Pérola do Índico, Armando Guebuza. Fico com vontade de electrocutor todo o doador, sobretudo esse pessoal do FMI, que insiste que não sabia de nada. Das duas uma: ou esse pessoal acha mesmo que somos os tais de países de “m…a” ou então é incompetente. Como bons banqueiros que são, deviam ter procurado saber como esse negócio estava a ser financiado. Claro que sabiam, são comparsas esses!

A perversão da justiça reside no facto de o FMI fazer chantagem sobre as instituições nacionais para fazerem o que ela quer como condição para a normalização das relações. A Kroll não obteve as informações que queria porque certos indivíduos se recusaram a falar. O que o FMI efectivamente está a dizer é que, se for necessário torturar essas pessoas até falarem, tudo bem, desde que falem. Pode parecer exagero, mas é assim: a vontade de ver um problema resolvido não se revela apenas na implacabilidade na obtenção de informação em falta. Revela-se também na forma como uma instituição reconhece problemas na maneira como as coisas são feitas e recomenda a sua abordagem, algo que o comunicado da PGR faz, ainda que mal, quando aponta para fragilidades na Lei de Probidade, nos regulamentos sobre emissão de avales do Estado, etc. Quererá o FMI dizer que se os indivíduos das primeiras letras do alfabeto nunca aceitarem falar, ou por um acidente colectivo qualquer (pode ser num “chapa”) irem desta para melhor, as relações entre o FMI e Moçambique nunca serão normalizadas? E que tal se se apurar, como me parece mais provável, que apenas se tratou dum negócio que parecia bom, mas na realidade não era, e que nenhum dos visados tirou benefício material próprio suficientemente significativo para explicar os montantes em falta? E aí? O FMI vai insistir em ter bodes expiatórios para alimentar a arrogância dos burocratas nas suas fileiras, esses que actuam com a impunidade de quem não deve explicações a eleitores?

É claro que eu sou suspeito para escrever estas linhas. Também sofro de “madoença” como fã dum dos indivíduos das letras do alfabeto, apesar de ele ter deixado o poder sem me nomear governador de Gaza. E tenho pouca paciência com a burocracia internacional, esse antro do poder sem responsabilidade. Mas a questão que volta a colocar-se é o que nós precisamos de fazer para nos vermos livres deste pessoal que só compromete a nossa viabilidade como país. É como dizia Groucho Marx, o grande comediante americano: ele nunca se juntaria a um clube que estivesse disposto a aceitar uma pessoa como ele como membro. É esta, na verdade, a atitude que devemos ter com clubes como o FMI. Devíamos querer estar longe deles. Ademais, devia ser possível introduzir uma norma internacional que desse a países como os nossos o direito de processar estas instituições por má assessoria. Só com essa cláusula é que iria acabar a sua arrogância. Desde 1987 que andam aí a tentar desenvolver-nos. A culpa não pode ser só nossa se ainda lá não chegamos.

A PGR perdeu, infelizmente, uma oportunidade de se posicionar claramente em relação a este assunto. É claro que ela tem a obrigação de investigar e processar toda a acção criminosa, incluindo neste caso. Mas não o devia fazer para satisfazer o FMI. Deve fazê-lo pela obrigação que ela tem de fazer respeitar a legalidade no país. E legalidade não é ajuste de contas nem lavagem de imagem. É também o reconhecimento dos constrangimentos dentro dos quais fazemos política. Justiça é também melhorar o que nos impediu de prevenir crimes. E seguir em frente. Uma instituição soberana como é a PGR nunca devia aceitar trabalhar a reboque de seja quem for, quer se trate de políticos nacionais, quer de samaritanos externos. O comunicado não foi escrito com convicção e mostra claramente que se trata duma tentativa de agradar a alguém (de fora). Ainda por cima, o comunicado é um desastre político, pois nele a PGR abdica da sua responsabilidade de defender o país ao aceitar ser instrumentalizada por actores externos.

Quanto mais penso no assunto, mais sou de opinião que a PGR, assim como o Governo, deviam ter a coragem de mandar passear o FMI. Nós não existimos para o FMI fazer o seu trabalho. O FMI faz o seu trabalho porque nós existimos.